domingo, 11 de outubro de 2015

O Deus Bailarino

Por Ed Rene Kivitz 



 O que acreditamos a respeito de uma coisa determina a maneira como nos relacionamos com ela. Eu, por exemplo, gosto de brincar com cachorros, mas se percebo que um cachorro é bravo, fico longe dele. Nos cachorros brincalhões dou até tapa. Assim é também com o mundo. Antigamente, acreditava-se que o mundo era uma estrutura hierarquizada, sempre do mais complexo ou poderoso para o mais simples ou fraco, sendo que Deus ocupava o topo da pirâmide. O imaginário das pessoas era construído a partir das relações entre reis e súditos, senhores e escravos, generais e soldados, e assim por diante. Cada um tinha um papel, que quase todo mundo respeitava, pelo menos por medo. Naquela época, a Igreja tinha autoridade, e quem não concordava com o que ela dizia morria na fogueira - mesmo que essa Igreja dissesse que índios e escravos não tinham alma e que o sol girava ao redor da Terra. 


 Quem acredita numa realidade estruturada a partir de autoridade e poder acha que a fé em Deus resolve tudo; afinal de contas, “agindo Deus, quem impedirá?”. Basta orar com fé e esperar a cura, a prosperidade, a volta do marido, enfim, a solução de qualquer problema. Deus manda, o resto obedece. Tudo quanto se tem a fazer é aprender os truques para fazer Deus mandar exatamente o que a gente quer que ele mande. Surgem então as correntes de fé e as ofertas compensadoras da falta de fé, e, principalmente, os gurus que sabem manipular Deus em favor de quem paga bem. Feitiçaria pura. Copérnico, Galileu, Newton, Einstein e sua teorias científicas fizeram com que o mundo passasse a ser visto como uma máquina, ou como um relógio, sendo Deus o relojoeiro. 

Neste mundo-máquina, tudo pode ser decodificado, explicado e controlado. As coisas funcionam em relações de causa e efeito previsíveis, como por exemplo as estações do ano, as fases da lua, os movimentos das marés, a órbita dos planetas e os eclipses solares. No dia-a-dia, estas relações também são previsíveis: a partir de informações sobre massa, força, aceleração e direção, sabemos calcular em quanto tempo o carro vai se chocar contra o poste, ou qual bolinha vai acertar a amarela e qual delas vai cair na caçapa. No mundo-máquina é possível também consertar quase tudo. 

Quando seu microondas pára de funcionar, basta chamar um técnico e ele vai dizer qual peça deverá ser substituída. O problema é que quem acredita que o mundo funciona assim acaba extrapolando isso para todas as suas relações: o casamento quebrou? Seu filho está dando trabalho? A vida não está funcionando? Então, basta chamar o especialista. Quase tudo tem conserto e pode voltar a funcionar como antes. Sendo verdadeiro que as relações de causa e efeito obedecem precisão matemática, basta apertar o botão certo que os fatos se encaixam e as coisas acontecem. Quer evitar problemas na família? Quer garantir uma boa carreira profissional? quem impressionar aquela loira? Então, basta fazer o curso certo, encontrar o método indicado, seguir as regras apropriadas. Logo, “A” sempre conduz a “B”. Caso você faça “A” e o resultado não seja “B”, então você pensa que fez “A”, mas não fez. O mundo-máquina é assim: tudo sempre funciona direitinho – você é que nem sempre funciona.

 Mais recentemente apareceram no cenário algumas teorias elaboradas a partir de outras percepções das ciências, como a física e a biologia. Na mecânica quântica, os movimentos não são tão previsíveis quanto na mecânica newtoniana. Então, o mundo já não é uma hierarquia nem uma máquina, mas um organismo vivo. As palavras mais adequadas para descrever a realidade são “teia”, “rede”, “arena”, e até mesmo “dança”. 

A realidade é complexa e os fenômenos naturais e sociais não são previsíveis nem manipuláveis. As pessoas são singulares. Para cada dez pessoas vivendo a mesma situação, você encontra dez reações diferentes. Os relacionamentos também são singulares. Dez casais que ganham um filho reagem de dez maneiras diferentes. Seres vivos não são padronizáveis. Não obedecem relações exatas de causa e efeito. Seres vivos não são coisas. E a vida não é exata. Navegar é preciso; viver não é preciso, disse Fernando Pessoa. 

 Quem acredita no mundo como um ser vivo onde cada ser e cada relação é singular, não consegue se submeter a esquemas, não tem a pretensão de gerenciar pessoas, não confia em métodos e nem se impressiona com números, estatísticas e probabilidades. Prefere outros caminhos. Escolhe o caminho da intimidade com o próximo; encanta-se com o mistério do sagrado; maravilha-se com a diversidade; presta atenção no jovem em conflito; ouve os dramas do homem que não pára em emprego; fica em silêncio diante da dor; e se ajoelha para orar antes de dar um passo sequer em qualquer direção. Esses não se dão muito bem com o Deus-general, ou o Deus-relojoeiro. Curtem mais o Deus-bailarino.


 

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