sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

ATÉ QUE TENHAMOS ROSTOS



Até Que Tenhamos Rostos, publicado em 1956, reconta o mito do Cupido e Psique. Como o próprio Lewis afirma, essa obra se trata de sua versão pessoal acerca do mito grego, e na qual, ele optou por recontar a estória por através de Orual, irmã mais velha de Psique. Ainda, nessa versão pessoal de C.S. Lewis, o autor optou também em fazer com que o palácio de Psique fosse invisível aos olhos das pessoas normais e mortais.

Como leitor, registro aqui a primeira intertextualidade que notei:
“Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade [...]” (O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry).

Acredito também que há possíveis intertextualidade com a Bíblia, pois as Obras de Jack (C.S. Lewis) são repletas de referências bíblicas e literárias (Lewis era Professor de Literatura em Oxford e Cambridge).

Ainda, sobre o conceito de invisível, podemos destacar Colossenses 1:15 e 1 Timóteo 1:17. Nesses versos, há uma clara característica de Deus – o Deus Invisível.

Ressalto que o presente texto, não se trata de uma análise crítica da Obra Até Que Tenhamos Rostos; mas sim, apenas as impressões e possíveis intertextualidade observada por um mero leitor.

Em resumo, o Romance reconta o mito grego. A narradora é Orual, filha de trom, Rei de Glome. O Rei tem três filhas: Orual (a mais velha e a mais feia), Redival e a caçula, Istra (Psique  - a mais bela de todas). Ao decorrer da narrativa, após a morte do Rei, Orual se torna a Rainha de Glome. E durante toda a sua vida, nossa narradora (digo nossa, pois como leitor, somos levados a criar laços de afeto e identificação com a personagem) realiza feitos que vão contra os costumes sociais do seu tempo. Realiza feitos que socialmente “são dignos de serem realizados por homens”. Nos dias atuais, podemos afirmar que a narrativa decorre sobre o empoderamento da Mulher e desmistificação do “gênero frágil”.

Sinceramente, a narrativa é belíssima. Diferente de As Crônicas de Nárnia, A presente obra é um Romance Adulto, repleto de amor & devoração, inveja, sofrimento, angustia, alto conhecimento, justiça, dor, superação, relação entre terreno e divino, beleza & feiura, etc.

Acredito que este Romance apresenta uma direta relação ao Livro de Jó, pois a obra inicia-se com a narradora apresentando suas queixas contra os deuses, em especial ao deus que vive na montanha cinzenta.

Como disse a própria narradora, ela escreveu esse livro (algo que ninguém teria coragem de escrever), pois ela está livre do medo dos deuses, pois não tem mais nada a temer em relação à fúria dos deuses. Assim, como Jó, na narrativa bíblica, quando chegou ao fundo do poço e não lhe restava mais nada, ele (Jó) realizou discursos direcionada a Divindade, e próximo do fim da narrativa do Livro de Jó, o SENHOR vem lhe responder. Vem trazer a resposta. 

Já no Romance Até Que Tenhamos Rostos, Orual afirma que terminou o seu livro (acusações e queixas contra os deuses) sem resposta, pois ela esperava que os deuses iriam se defender das acusações. Contudo próximo ao seu fim terreno, a narradora afirma que “Sei agora, Senhor, por que não deste nenhuma resposta. Tu és a própria resposta. Diante do teu rosto, as perguntas desaparecem. [...]”

A escolha do nome do romance Até Que Tenhamos Rostos foi realmente uma excelente sacada do autor. E essa ideia de que os deuses não falam conosco, em virtude, de ainda não termos rostos, conforme consta no capitulo 25. O que vai de encontro com a ideia bíblica de não conhecemos a Deus, mas um dia estaremos face a face, e o que era desconhecido nos será conhecido. 

Por falar em capitulo, a obra é composta por 25 (vinte e cinco) capítulos, dividido em 02 (duas) partes. A Primeira Parte é composta por 21 (vinte e um) capítulos, e a Segunda Parte por 04 (quatro) capítulos. A narradora encerra sua jornada terrena sem poder reescrever o seu livro, e deixa o livro com o paragrafo "final" incompleto: “[...] Eu te odiei por muito tempo, te temi por muito tempo. Eu poderia...”.

Depois deste trecho narrativo, o sacerdote de Glome, afirma que a Rainha morreu antes de concluir sua fala. Depois o sacerdote guarda o livro da Rainha no templo e o preserva afirmando que o livro fora escrito pela pessoa “mais sábia, justa, valente, afortunada e misericordiosa de todas as princesas conhecidas em nossa parte do mundo”.

Durante sua jornada terrena, Orual teve a companhia de Raposa, que lhe foi como um mestre, ensinado lhe a filosofia grega, e também a companhia de Bardia (soldado do Reino) que lhe foi o contado com o senso comum. Em suma, a narradora/protagonista estava em constante aprendizagem e construção de identidade mediante as dualidades: Ciência e Religião; Filosofia e Senso Comum, Beleza e Feiura, Amar e Devorar, morrer e casar, a Natura dos Deuses e a Natureza Divina, etc.

No capitulo 07, Orual diz que “deve haver muita coisa que nem o sacerdote nem Raposa entendem”. Assim, deve haver coisas que nem a religião e nem a filosofia compreendem.

Há diversos trechos narrativos muito interessante e riquíssimo, destaco:

No capítulo 13, consta o conceito de que a família real tivesse sangue divino. Orual nessa sociedade que afirma que a casa do Rei tem sangue divino. Contudo, o Raposa, o filosofo diz categoricamente que “Todos os homens têm sangue divino, o deus habita em todos os homens”. 

Para Raposa, não importa o status social: rei, nobres, súditos, plebeus, escravos, todos são imagem do divino. Lembrei-me de Efésio 4:6, ”Um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos”.

Como bem disse Teilhard de Chardin, “não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, somos seres espirituais vivendo uma experiência humana”. A centelha divina está nos homens. 

Orual diz que era filha de Glome (doutrina) e aluna de Raposa (sabedoria da Grécia), e sua vida fora vivida nessas duas metades que nunca se juntaram. Entretanto posso acreditar que no fim de sua vida essas metades se juntaram e formaram um todo para a protagonista. Pois Orual compreendeu que ela também é Psique.

O desenvolvimento de Orual no enredo é fabuloso. Em uma sociedade na qual uma mulher não poderia liderar um exército, Orual se tornou a personagem mais fantástica e forte de todo o reino. Ela liderou o exército. Ela governou com sabedoria e muita destreza. Ganhou a admiração do povo (livre e dos escravos), dos nobres e também a admiração do sacerdote. Enfrentou os deuses. E reinou com justiça para os menos afortunados. Uma mulher que ressignificou o conceito de feminino. Coragem não é um atributo exclusivamente masculino.

Em vários momentos, a Narradora se deparava com a seguinte frase direcionada a si, dizendo “Ah senhora, é mesmo uma pena que a senhora não nasceu homem”. Assim, ela venceu todos os conceitos de sua sociedade e encerrou a sua vida, como nas palavras do sacerdote, a pessoa “mais sábia, justa, valente, afortunada e misericordiosa de todas as princesas conhecidas em nossa parte do mundo”.

Encerrarei o meu texto por aqui, senão irei me prolongar ainda mais. As obras de são cheias de referências. E a cada página folheada e a cada trecho destacado, mais assunto vai surgindo.

Recomendo a Leitura de Até Que Tenhamos Rostos. A editora Ultimato está de parabéns pela tradução da obra. Belíssima capa, com ênfase no castelo (invisível – na versão Lewisiana) de Psique. Só não concordei com a escolha do subtítulo “A releitura de um mito”. Certamente escolha da equipe de marketing. Certamente, eu preferiria a tradução literal de “A Mith Retold” [Um mito recontado]. Mas a escolha da editora não altera a essência do Romance.

E muito obrigado a você leitor (a) que persistiu e chegou até ao fim do meu texto sobre minhas impressões acerca do livro Até Que Tenhamos Rostos, de C.S. Lewis. Sinta-se à vontade em deixar os seus comentários.

Grande abraço.

Fabio Faith

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